Michel
Debrun
Apresentamos
a seguir os principais temas e articulações de um trabalho em andamento sobre a
identidade nacional brasileira:
1. O
que é ser brasileiro? Será mesmo que faz sentido falar desse ser? É
fácil afirmar a existência da Nação brasileira, se atentarmos apenas para os
aspectos geográficos, jurídicos ou diplomáticos. E definir a identidade
brasileira como o atributo, a etiqueta do conjunto populacional, ou dos
indivíduos, que vivem dentro desse quadro formal. Mas parece que Nação e
identidade nacional exigem algo mais. Como, por exemplo, um consenso em torno
de certos valores, e uma diferença entre ele e outros tipos de consenso, ou
entre eles e outros consensos nacionais. Ora, desde os fins do século XIX,
muitos têm duvidado seja da coesão brasileira seja da diferença específica do
Brasil.
2.
Hoje essas dúvidas se acham reforçadas, face a três categorias de indagações:
a)
Como poderia haver consenso de base num país caracterizado historicamente por
consideráveis desigualdades econômicas, sociais, culturais e políticas entre
classes, etnias e regiões e, no momento, pelo agravamento das dificuldades
socio econômicas? Principalmente se observarmos o aumento da marginalidade, da
criminalidade, do enclausuramento dos ricos e poderosos fenômenos
que parecem assinalar, aos olhos de alguns, a ressurreição, perversa, de uma
sociedade de estamentos.
b)
Como poderia o nível nacional manter uma significação central, se o que
presenciamos é a proliferação das identidades locais, de bairro em particular?
A novidade não é apenas quantitativa como qualitativa: a diferença com o
passado é que, agora, tais identidades não parecem mais se situar em relação a
uma identidade nacional; ou seja, não reconhecem a capacidade de regulação e
arbitragem em última instância do Estado Nacional. Esse Estado é percebido como
instância de coação pura.
c)
Não é também o nível nacional minado por cima, devido ao crescente
cosmopolitismo da cultura? Mesmo porque esse cosmopolitismo não é igualitário,
e repercute no seu âmbito as dissimetrías e desigualdades que acompanham a
internacionalização da economia.
3.
Tais indagações têm suscitado dois tipos de respostas:
a)
Há quem exclui pura e simplesmente a existência de uma identidade nacional
brasileira. Se tanto é que existiu no passado, ela estaria sumindo. Não se pode
negar, admitem, a presença de certos traços etnoculturais comuns à maioria da
população brasileira; embora esses traços sejam diversamente modulados conforme
as regiões, as classes sociais, os níveis de instrução. Esses traços,
manifestos por exemplo nas religiões populares, nas atividades lúdicas, nas
distinções operadas entre a Casa e a Rua,podem
definir uma brasilidade. Até um caráter nacional, em que pesem
as conotações ideológicas e simplificações que, via de regra, acompanham essa
noção. Mas não há consenso nacional em torno de valores básicos. Nem para
defender ou promover aqueles Valores revelados pelos traços etnocuiturais. O
que presenciamos é, tão-somente, a generalização e a repetição de certos
fenômenos socioculturais em toda a extensão do território dito nacional. Nada
indicando que o atomismo tantas vezes atribuído (Alberto
Torres, Oliveira Vianna, Nestor Duarte) à sociedade brasileira tenha sido
superado. E, na falta de um consenso com que ela poderia se articular e se
combinar, a própria brasilidade ou seja, a diferença entre o Brasil e as
outras nações está fadada a resvalar para o folclore, para o atrativo turístico.
A sucumbir, também, ao rolo compressor dos cosmopolitismos.
b)
Outros, porém, pensam que a denúncia da inexistência da identidade nacional
brasileira é insuficiente. Pois não há como negar que o discurso da
Nação quer se apresente como discurso sobre a Nação, para a Nação ou
da própria Nação está florescente, em particular na imprensa. Lemos
constantemente frases do seguinte gênero: "A Nação assiste estarrecida e
indignada a tal acontecimento". Isso revela uma substancialização, uma ontologização da
Nação. E, no rastro dela, os brasileiros, ou muitos deles, se imaginam
portadores de uma identidade nacional. Devemos, portanto, explicar essa
aparente contradição: como entender que a referência à Nação brasileira e à
identidade nacional brasileira seja moeda corrente, se essa referência não
corresponde a nada de real?
É a
indagações desse tipo que procuravam responder os "Ensaios sobre o
Nacional e o Popular na Cultura Brasileira"1,
no início da atual década. Tentemos articular e sistematizar as teses difusas
nestes "Ensaios":
· Certos
grupos ou instituições têm a preocupação de difundir a temática da Nação isto
é, expressões como identidade nacional, auto-afirmação nacional,
cultura brasileira, etc. É que essas expressões sugerem, senão a
negação da própria existência da luta de classes, pelo menos a obrigação de
subordinar os interesses e identidades de classe ou de regiões, etnias,
famílias, indivíduos a um interesse geral e a uma entidade mais abrangente.
· A
articulação e a difusão do discurso nacional não obedece,
portanto, à intenção acadêmica de explicitar o significado dos termos e
expressões desse discurso. Ou melhor, mesmo quando essa intenção está presente,
ela não constitui um passo autônomo. Acha-se integrada, entre outros elementos,
a uma estratégia de poder. De forma que o que esse discurso propõe não é um
estudo, mas uma ideologia da Nação, da identidade nacional, do interesse
nacional, da cultura nacional, etc.
· Essa
conotação ideológica não seria, por si só, depreciativa. Só que o discurso
nacional não vai, como querem imaginar, ao encontro de um anseio
genuíno das camadas populares. Se fosse o caso, as elites portadoras do
nacional se limitariam apenas a formular e sistematizar como os
intelectuais, segundo Gramsci sentimentos e aspirações comuns a todos; teríamos,
então, o nacional-popular. Ou seja, o consenso de muitos em torno de certos
valores; e a identidade nacional definida, em nível coletivo, como sendo o próprio
consenso, e, em nível individual, como a participação de cada um nesse
consenso. Mas tal não é o caso: o que é nacional, no Brasil, não é popular; e o
que é popular não é nacional. O elemento popular se exprime através de várias
identidades, religiosas, lúdicas, etc., sim, baseadas no consenso dos seus
participantes. O conceito de nacional-popular é vazio, pelo menos na atualidade
brasileira.
· Nessas
condições o discurso nacional tende a se esgotar em si mesmo e
nas vontades ou práticas de poder que lhe são associadas. Vontades, aliás,
conflitantes entre si e que disputam a apropriação do símbolo Nação. Se é
assim, a Nação não é senão a encruzilhada ou o conjunto, movediço, dos discursos
concernentes à Nação, à identidade nacional, ao nacional-popular, etc., aos
quais convém acrescentar outras linguagens, como os ritos
comemorativos da nacionalidade. Logo a ideologia da Nação e a Nação se
confundem, mesmo que a primeira possa conter, num ou noutro ponto, alguma
verdade objetiva.
· No
entanto, o discurso nacional ou tal das suas variantes, de
direita ou de esquerda, pode alcançar certa ressonância popular, devido ao fato
de que ele não é simples palavra ou ideologia solta no ar, mas se insere numa
rede complexa de práticas de dominação. Desta forma podemos dar outra definição
da Nação: é a comunidade em que certo tipo de discurso sobre a Nação tem
razoável aceitação. Mas fica entendido que essa aceitação não tem nada de
nacional-popular (tai como o nacionalismo imagina o nacional-popular); é algo
artificial, postiço, logo precário, apesar da pressão dos aparelhos ideológicos
de Estado e outros. A difusão generalizada da temática da Nação não contradiz,
portanto, a crise que a idéia de Nação parece estar atravessando, hoje, no
Brasil.
As
teses dos "Ensaios..." (ver nota 1)
estão discutidas ao longo do nosso trabalho.
4.
Endossamos em grande parte a análise crítica do nacional-popular, tal como ele
se apresenta em certos aspectos da atualidade brasileira, isto é, como unidade
ilusória e, portanto, como ideologia dele próprio. Crítica parecida já estava
presente no trabalho inovador de Carlos Guilherme Mota sobre " A Ideologia
da Cultura Brasileira". Nos dois casos trata-se de desmistificar, ou
desarticular, entidades (a cultura brasileira ou o nacional-popular) que se
oferecem como evidentes, como não-suscetíveis de serem
questionadas. Fazemos, todavia, três tipos de ressalvas às análises críticas
dos "Ensaios...":
a) O
conceito de nacional-popular não parece intrinsecamente vazio, ou
contraditório. Como o queriam outrora Kenan, à direita, e Gramsci, à esquerda,
pode haver em tese e provavelmente houve na história das velhas nações
união real, embora parcial, do nacional e do popular. Ou seja, pode haver
consenso popular em torno de valores nacionais e identidade nacional de quem
participa desse consenso.
As
diferenças ou oposições de classe ou etnias, regiões, etc. invocadas para
demonstrar a impossibilidade de tal consenso não devem nos fazer esquecer que a invenção da
Nação, das primeiras nações, se deve precisamente à necessidade de criar um
liame forte portanto não artificial, não redutível a uma ideologia do
liame ou a um discurso sobre o liame entre
elementos muito heterogêneos. Nações homogêneas, como a atual Polônia
composta quase unicamente de elementos ao mesmo tempo poloneses e católicos ,
são a exceção, não a regra. Mais exatamente a Nação originou-se do descompasso
entre duas categorias de fenômenos, a partir dp século XVI:
· Grande
complexidade das sociedades ocidentais em termos de regiões, etnias, estamentos
e classes (incipientes).
· Paralelamente
a unidade infra-estrutural crescente dessas sociedades, pela generalização da
economia capitalista e pela articulação de todos com todos através da divisão
do trabalho (a solidariedade orgânica de Durkheim). Cria-se um
espaço econômico unificado, progressivamente despojado de barreiras e
limitações corporativas.
A
invenção da Nação ou melhor, a transformação em Nação de um espaço político
previamente circunscrito e fechado pelos acasos de uma história dinástica,
militar, etc. se dá sob o impulso inicial do Estado, para igualar os dois
aspectos acima expostos. O primeiro deve se equiparar ao segundo, a sociedade
deve se tornar para si o que ela já é em si, em
nível econômico infra-estutural. Ou seja, unificada. Esse para si,
por sua vez, só pode ser algo espiritual, seja qual for a maneira
de interpretar essa espiritualidade. Não necessariamente como uma fusão
das consciências, operada pela solidariedade mecânica, como
queria Durkheim. O essencial é destacar os dois aspectos. Primeiro, a Nação tem
um caráter abstrato: mesmo nos momentos de entusiasmo coletivo, ela não é sentida por
seus membros como é sentida, por exemplo, uma comunidade local
ou uma propriedade como abrasilidade. Mesmo baseada no consenso,
ela paira em cima do social imediato. Segundo, e
correlativamente, ela comporta uma esfera pública no sentido
de Habermas e, antes dele, do Marx da "Questão Judaica" , na qual ou
em torno da qual são tratados, hierarquizados ou reestruturados os interesses
das várias categorias de participantes, a fim de se chegar à definição de um
interesse geral. Definição movediça, sujeita à flutuação das relações de
dominação, mas que, salvo em épocas de decadência ou de crise, busca a
transformação dessas relações em relação de hegemonia, em virtude da própria
necessidade que deu ensejo ao invento da Nação. A identidade nacional, da
sociedade como um todo no sentido em que Braudel fala da "identidade da
França" se torna então possível, e não como mero artefato ideológico. Em
que pesem os conflitos, mesmo quando irredutíveis, de classes, etnias ou
regiões.
b)
Deve-se reconhecer que, no âmbito cívico-político, o Brasil de hoje destoa
bastante desse tipo ideal do nacional-popular. O próprio êxito, relativo
embora, do discurso nacional e das identidades nacionais
outorgadas que ele fabrica, revela que ele se impõe ou se impôs ate o momento
num semivácuo. Ou, mais exatamente, devido à impossibilidade secular em que
se encontrava a grande massa da população de romper certos bloqueios históricos
e de ter acesso numa ação coletiva autônoma, geradora de uma nova identidade
nacional. Mas a idéia, subjacente nos "Ensaios...", de que as massas
são, no fundo, alheias à questão nacional só lhes interessariam as
identidades de classe, ou de base , e por isso mesmo superficialmente manipuláveis,
esbarra em duas objeções. De um lado, pode haver um potencial popular pronto a
cristalizar nesse sentido (e esse tema está desenvolvido na conclusão do
trabalho). Mesmo porque a proliferação, já referida, das identidades de base
necessita um quadro global em relação ao qual, e dentro do qual, ela possa se
situar; e porque esse quadro não pode ser, desde já, nem uma comunidade universal
nem mesmo uma comunidade latino-americana. De outro lado, mesmo em se tratando
do nacional-popular ilusório apontado pelos "Ensaios...", encontramos
o seguinte dilema:
· Ou
constata-se que o discurso nacional não pega junto a
seus destinatários e então sua inutilidade já deveria ter ficado evidente. E o
discurso, sumido do palco;
· Ou
então se constata que ele pega, quando nada em superfície.
Mas, neste caso, parece difícil explicar essa aceitação só pelo peso das
práticas de dominação. O discurso nacional deve encontrarâncora, senão
numa identidade nacional já presente no ouvinte, pelo menos num anseio para que
tal identidade se desenvolva, eventualmente dirigida contra as práticas de
dominação associadas a esse discurso. De modo geral, a possibilidade de reduzir
a Nação e a identidade nacional à ideologia da Nação ou da identidade nacional
de fazer tudo caber dentro da ideologia "De" e do discurso
"Sobre" constitui uma possibilidade-limite. Onde quer que haja uma
certa continuidade e generalidade do discurso nacional, as coisas nunca podem
alcançar esse limite, se bem que possam se aproximar dele.
c)
As próprias análises dos "Ensaios..." deixam vislumbrar a
possibilidade de um nacional-popular autêntico. As críticas que dirigem ao
nacional-popular dizem respeito, sobretudo, ao caráter ilusório de um consenso
nacional político, ou cívico-político, em torno de objetivos também políticos,
como a realização de objetivos do tipo Pátria Grande ou Brasil-Potência. O
nacional-popular, na esfera cultural, não parece criticado enquanto tal; ou
seja, não se exclui que haja um consenso no caso, uma comunhão em torno,
por exemplo, da música popular ou popular/erudita brasileira. Quando José
Miguel Wisnik avalia o propósito, por parte de Villa-Lobos durante o Estado
Novo, de espalhar os coros orfeónicos pelo Brasil afora, ele não acha ilegítima
a possibilidade de que, com isso, o Brasil se transforme numa festa, num imenso
auto-espetáculo. Denuncia, apenas, a intenção de fazer do coro um instrumento
de integração sociopolítica: pois cada coro devia se tornar um microcosmo de
Brasil novo, e exemplificar a unidade do país e o disciplinamento das
paixões, pretendia-se, a partir de um nacional-popular musical
eventualmente autêntico, suscitar ou reforçar uma comunidade política ilusória.
5. A
idéia de um nacional-popular cultural e de uma identidade nacional nele
baseada é, aliás, um tema familiar para toda uma tradição antropológica e/ou
literária. Procuram circunscrever uma brasilidade. Mas, a
partir dela, vão além. O que lhes interessa, sobremaneira, é que a cultura,
através dos seus portadores, se torne auto-referencial sem se fechar numa
torre de marfim, ao contrário e vise seu próprio alargamento e
aprofundamento. Nisso consiste sua universalidade. Não há, é claro, imperativos
categóricos, que seriam do tipo devemos todos desfrutar o Carnaval;
nem mesmo se pode decretar "devemos praticar um anticarnaval", um
carnaval da miséria, como aquele encenado por Joãozinho Trinta. Tais
imperativos representariam uma invasão da esfera sociocultural por atitudes
éticas ou ético-cívico-políticas. Mas parece que a idéia de esfera pública com
valores a serem protegidos ou promovidos, pelo desejo senão por obrigação está
presente no campo cultural também.
É
esse aspecto que aparece na interpretação que Maria Isaura Pereira de Queiroz
dá do Carnaval. Este é visto, em certas das suas manifestações, como uma forma
de auto-afirmação popular, que concerne potencialmente a muito mais gente do que
o pequeno grupo diretamente envolvido. E também é algo essencialmente cultural.
Pode ser, é verdade, que haja nisso uma forma de protesto contra a
impossibilidade de uma participação política efetiva, em particular em nível
nacional. Mas, mesmo nesse caso, isso não significa que o Carnaval seja
praticado como uma atividade política de segunda categoria, ou disfarçada, ou
indireta. Simplesmente, face às dificuldades presentes para participar de uma
vida política autêntica, se optou por outra forma de vida, em que se torna
possível uma experiência comunitária, que desejam por sua vez estender em nível
nacional. Em Roberto da Matta encontra-se uma idéia parecida: com o Carnaval
presenciamos o advento de uma comunidade efêmera, mas
real e original, que permite agüentar ou compensar até certo ponto as agruras
da sociedade, caracterizada, esta última, por separações,
antagonismos e hierarquias.
Outras
experiências e também reflexões sobre essas experiências, e reiterações das
experiências a partir das reflexões visam aprofundar outra vertente da
identidade nacional cultural. Menos seu aspecto comunitário, de comunhão, do
que sua diferença, sua especificidade. Não forçosamente como quer o
nacionalismo ingênuo, pela recuperação e expansão de uma cultura originária que
teria, até o momento, ficado soterrada ou marginalizada. Nem pela constituição,
em seu favor, de uma reserva de mercado. Mas pela
multiplicação das interações entre a cultura cosmopolita (ou portuguesa,
francesa, anglo-saxônica) que vem se reiterando desde os primórdios do Brasil
(e que talvez mereça melhor a denominação de originária), e uma
cultura endógena que, em seguida, se firmou aos poucos.
Pode-se conceber, entre o pólo exógeno/endógeno e o pólo endógeno
inúmeras modalidades de empréstimos, alianças, antagonismos. Pode
continuar também havendo interpretações recíprocas, de cada pólo pelo outro
um sendo visto como residual e folclórico, o outro como artificial, fora
de lugar. O essencial, porém, aos olhos dos que defendem a idéia de
uma dualidade básica da cultura brasileira, é que ficam excluídas, seja a fusão
harmoniosa dos dois pólos, seja a expulsão de um deles pelo outro, seja a sua
coexistência pacífica mas estanque. A propósito deste último ponto: não há,
como em outros lugares, duas culturas, uma para o povo, outra para as elites,
embora possam se desenvolver acentuações num ou noutro
sentido; cada brasileiro seria portador, ao menos em potencial, da mesma
dualidade que, aliás, foi explorada, em nível auto-referencial, por obras
como as de Mário e Oswald de Andrade, e pelo Tropicalismo. É nessa igualdade
tensa que residiria e sem perspectiva de superação a curto e médio prazos a
identidade nacional cultural brasileira.
Há
também a possibilidade de uma interação generalizada entre regiões, etnias,
classes. E isso interessa tanto ao aspecto comunitário como ao aspecto da
diferença da identidade cultural. Não há mais, apenas, generalização do
Carnaval, do samba, do futebol por justaposição, por exemplo, de inúmeros
microcarnavais através da imensidão brasileira mas a transformação, mediada
pela TV, do Brasil em imenso auto-espetáculo. A nova transparência do espaço
permite a todos presenciarem todos, pularem com todos. Parece que o privatismo
da sociedade brasileira não é, nessa área, incompatível com a expansão do
universal, da esfera pública. Cada um pode, ficando no seu lugar, participar de
tudo com todos. Não há a dialética tensa de público e de privado, que vigora,
ou deveria vigorar, na área política. Mas uma transição e uma oscilação suaves
entre os dois pólos.
Ocorre
algo parecido com a novela. Esta, hoje, vale menos pelo seu conteúdo, que pode
ir de conservador a vagamente progressista, do que pelo fato de pôr todos em
contato com todos: para onde quer que eu vá, sempre encontrarei pessoas para
narrar ou comentar o capítulo da véspera. É aqui, talvez, que Mac Luhan tem
razão: o meio é a mensagem. Mas há uma contrapartida: o conteúdo de uma novela,
mesmo quando corrosivo, não mobiliza ninguém pelo menos quando a participação
na televisão se limita a si própria (o que, hoje, é a regra), não se inserindo
num quadro mais amplo de práticas sociopolíticas.
6. A
partir desses vários pontos é possível esboçar três teses, que estamos
desenvolvendo no momento:
a) A
identidade nacional brasileira não é uma só. As suas dimensões
política e cultural, em particular, não têm caminhado juntas. Nem remetem a um
mesmo espírito, à diferença do que acreditava Gilberto Freyre, para quem a
tolerância mútua que reina na área sociocultural das relações humanas devia se
traduzir, com naturalidade, por igual tolerância na área política: o
liberalismo nosso não devia nem podia fundamentar-se, como o
liberalismo anglo-saxônico, na competição onde ganha o melhor ou o mais astuto,
mas na conciliação harmoniosa das diferenças. Não é bem assim: existe de fato,
no Brasil, uma forma política da conciliação, mas esta, longe de se definir
pela tolerância mútua, descansa na cooptação mais ou menos forçada do menos
forte pelo mais forte.
b) O
advento de uma identidade nacional forte, na área cívico-política, tem sido
bloqueado desde as origens. Pretende-se mostrar como se estabeleceram
mecanismos de reprodução quase automática das grandes desigualdades o
que dificultou, e ainda dificulta, a emergência e, sobretudo, a continuidade do
nacional-popular. Na falta daquela identidade floresceram pseudo-identidades:
umas artificiais outorgadas pelos grupos dominantes, pela Igreja, pelo
Exército, pelo Estado; outras mais naturais, mas raquíticas, por resultarem,
seja da acomodação dos atores às estruturas de dominação (caso da identidade fisiológica),
seja da sua revolta, mas desprovida de bases, contra essas estruturas (caso da
identidade ideológica). Os atores oscilavam oscilam entre essas
várias identidades. O que significa que o ator não ancorava em
nenhuma delas (não se identifica com a própria identidade) e que, como
conseqüência, sua atuação era lábil, inconstante, pronta aos abandonos e
recomeços. O abalo, ou mesmo a ruptura, hoje, de certos bloqueios permite
todavia encarar a possibilidade de uma nova identidade, ao mesmo tempo menos
oscilante e mais capaz de servir de pivô, de raiz para uma ação sociopolítica
coerente e de longa duração.
c)
No âmbito sociocultural não houve bloqueios parecidos, apesar do fato de um
elemento impulsionador essencial, o negro, ter sido marginalizado nesse âmbito
também até a década de 20, quando as perseguições ao samba de morro e aos
terreiros de Candomblé começaram a diminuir. Essa expansão da esfera
sociocultural, e de identidade nacional que se gera durante o processo, parece
ter várias explicações. Citemos apenas duas. Primeiro, a própria pujança da
afirmação negra e de outras camadas, marginalizadas ou subalternas. Essa
pujança é, ao mesmo tempo, um fenômeno natural e uma resposta
dessas camadas à sua exclusão da identidade cívico-política efetiva (senão
teórica). Segundo, a tentativa por parte dos grupos dominantes de neutralizar
as aspirações cívico-políticas das carnadas subalternas, valorizando, depois de
tê-la combatido (até os anos 20), uma comunidade cultural nacional de que eles
próprios podem fazer parte. O que representa, de um lado, uma estratégia válvula
de escape (dirigida aos grupos subalternos) e, de outro lado, uma
integração real, e não apenas ideológica, de todos os brasileiros, ricos e
pobres. Só que essa integração, apesar de enaltecida, é simultaneamente
folclorizada e no limite turistificada pelos de cima, por ser apenas
cultural e polarizada em torno de valores de origem afro-brasileira.
7.
Para tentar entender a gênese da dualidade entre identidade política e
identidade cultural, e avaliar as possibilidades da sua evolução, temos
utilizado, como fio condutor, a "Ideologia da Realidade Brasileira".
Entende-se por isso o conjunto das posições que, a partir de uma concepção
global da sociedade brasileira e da sua história, procuram tirar ilações no que
diz respeito à especificidade e ao destino dessa sociedade, da sua política da
sua cultura. O termo ideologia não é utilizado num sentido
pejorativo. Mesmo porque constam, no elenco dos trabalhos a serem analisados,
obras de consagrada reputação científica. A intenção é tão-somente indicar que
esses trabalhos se situam numa perspectiva engajada, seja ela explícita ou não.
A
escolha desse conjunto ideológico, como fonte principal de reflexão sobre a
identidade nacional brasileira, se prende ao fato de que, na maioria dos
autores em foco, manifesta-se uma preocupação dominante pela constituição ou
pela preservação da Nação brasileira; e pelos obstáculos, bloqueios, meios,
caminhos que podem dificultar ou facilitar a consecução desses objetivos. Tudo
isso dentro de uma perspectiva histórica, que pretende apontar fenômenos de
longa duração, para além da diversidade das conjunturas. Espera-se do estudo da
"Ideologia da Realidade Brasileira" três fontes de informação:
a)
Os autores, mesmo os mais ideológicos (desta vez no sentido
mais usual: pensamos em escritores como Oliveira Vianna, Gilberto Freyre,
Cassiano Ricardo, Álvaro Vieira Pinto, Oliveiros S. Ferreira, etc.), podem
apresentar, sob tal ou qual ponto, uma visão aceitável da identidade nacional
brasileira. Ou seja: podem dar uma idéia da existência ou da inexistência dessa
identidade; se existir, do seu caráter incipiente ou plenamente confirmado; do
seu caráter global ou apenas setorial (restrito, por exemplo, ao âmbito
cultural); ou das diferenças entre ela e outras formas de identidades
nacionais; ou das causas disso tudo.
b)
Por outro lado, grande parte desses autores formam, juntos, um campo
estrutural. Em dois sentidos. Primeiro, defendem posições arquetípicas, isto
é, recorrentes desde pelo menos o início do século, e as atitudes políticas e
culturais concretas a que estão ligadas essas posições também são recorrentes e
se revezam no papel hegemônico. Exemplos de tais atitudes, no âmbito político:
aconciliação, o autoritarismo desmobilizador, o autoritarismo
mobilizador. Segundo, pelas próprias modalidades da sua recorrência,
da sua oposição e do seu revezamento, essas posições revelam indiretamente
características do contexto social, político e cultural. É essa ida do texto ao
contexto que queremos praticar e explorar. Não forçosamente no sentido de
detectar interesses subjacentes declasses ou de etnias. Mas,
sobretudo, de mostrar que certas coisas não poderiam ser ditas, ou seriam ditas
de outro modo, se o contexto não apresentasse certos vazios, certas lacunas.
Tomemos
um exemplo. No que diz respeito à identidade política ou ao aspecto político
da identidade brasileira encontramos entre os autores uma dicotomia bastante
rígida. Ou essa identidade é vista como já dada, no que tange
ao essencial, seja a partir de um acontecimento fundador que se cristalizou em
tradição, seja a partir de uma lenta sedimentação de traços etnoculturais. Ou
então, a identidade é vista como a fazer ou a refazer na
perspectiva de alguns isebianos a partir de um projeto
radical de liberdade individual ou coletiva. Em termos sartrianos poderíamos
dizer que lidamos com a oposição brutal do em si e do para
si. Ora as identidades normais nacionais e outras
escapam dessa dicotomia. Constituem-se, é claro, a partir de dados da
geografia, da economia, das etnias, etc., no caso das identidades nacionais. Na
outra ponta, se traduzem em projetos, e, no caso da Nação, há sempre uma luta
entre vários projetos, que pretendem interpretá-la e capturar o símbolo Nação.
Mas existe também um andar intermediário: o das interações coletivas de base,
as quais, quando são efetivas isto é, quando não são constituídas por meras
relações de força , dão ensejo ao surgimento e ao desenvolvimento de uma
esfera pública. Essas interações, e seus resultados por sua vez, se desenvolvem
através do tempo, permitindo a constituição de uma memória coletiva que
constitui o núcleo da identidade nacional: é nela que os dados são
transformados em projetos; é a partir dela, também, que os
projetos, embora livres e não se reduzindo a um simples prolongamento do
passado, vão aparecer como mais ou menos enraizados ou mais ou menos gratuitos,
e, por isso, capazes ou não de adquirir força histórica. Ora, a ausência quase
geral de referências, na literatura política brasileira, a esse núcleo deixa
supor que ele é de fato inexistente. E que, talvez, não se possa até o momento
falar, no sentido forte, de uma identidade política brasileira, embora haja
possíveis sucedâneos.
c)
Outro recurso oferecido pela "Ideologia da Realidade Brasileira"
reside no seu engajamento. As suas propostas no sentido de redescobrir, ou de
forjar, ou de completar a identidade nacional hão de ser vistas, elas próprias,
como manifestações da identidade nacional, ou da sua ausência, ou do seu
caráter incipiente, ou do seu fracasso. Por exemplo, o ISEB definia a Nação
como o projeto de fazer existir a Nação (a Nação é auto-referencial, ela deve
querer a si própria) através do desenvolvimento; e definia a identidade nacional,
ou simétricamente a antibrasilidade, pelo fato de se associar ou não a esse
projeto. Ora, essa atitude, assim como atitudes semelhantes dos Centros de
Cultura Popular (CCP), se consubstanciou, no fim dos anos 50 e início dos 60,
numa prática mobilizacionista que pode ser encarada não só como urna tentativa
de fazer surgir a identidade nacional a partir da ideologia e da educação
ideológica, mas também como um esboço de tal identidade. Esboço fracassado,
como se viu em seguida, já que não emergia de uma memória histórica na qual ele
pudesse se alicerçar. Se autoconcebia como sem passado e era de fato sem
passado. Reduzindo-se, por isso mesmo, a uma simples tentativa de autoritarismo
mobilizador.
8. O
trabalho comporta também um capítulo teórico, em que se pretende definir:
a) O
que é identidade, de modo geral. Procura-se mostrar que toda identidade humana
implica não apenas uma certa permanência através do tempo (o que Paul Ricoeur
chama de mesmice), mas também um aspecto auto-referencial; a
identidade deve se enunciar, se reiterar, para ser ("Eu sou eu
mesmo"). Essa reiteração, nós a chamamos também utilizando Ricoeur de ipseidade. Finalmente
temos um terceiro patamar, no qual a identidade interpreta a si própria, se
discute, quer se modificar, se projeta de tal ou qual maneira rumo ao futuro.
Esse patamar é o da auto-reflexividade, que constitui um redobramento da
auto-referencialidade.
b) O
que é uma identidade de grupo. Ou seja, quais as complexidades novas trazidas
pela interação entre vários pólos no seio de uma mesma identidade? Até que
ponto é legítimo usar uma expressão como consciência coletiva?
c) O
que é, especificamente, a identidade nacional. As páginas acima dão alguma
idéia da nossa posição a respeito.
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