sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Golpe militar de 1964 completa 50 anos

Foi o início de uma ditadura militar de duas décadas no Brasil. Especialistas contam como ocorreu a tomada do poder do país pelos militares.


Para sabermos o que ficou do golpe militar, é preciso antes resumir o que ele introduziu na vida do País.
 
O golpe representou, antes de tudo, a ruptura do processo democrático que o Brasil construía há menos de 20 anos. Pela primeira vez, havíamos elegido presidentes, sucessivamente, por quatro mandatos, com voto universal – mesmo que ainda excluindo os analfabetos.
 
É certo também que todavia ainda era uma democracia frágil, tanto assim que dois desses presidentes eram militares – Dutra e Getúlio Vargas – e dois deles não completaram seus mandatos – Getúlio se suicidou e Jânio Quadros renunciou logo no início do mandato. Apenas um desses presidentes havia sido civil – Juscelino Kubitschek.
 
Mas o período entre 1945-1964 tinha representado mesmo assim um avanço democrático, porque tinha sido precedido por 15 anos de ditadura de Getúlio Vargas, que, por sua vez, tinha interrompido uma fase de um sistema oligárquico, dominado por caciques e pelo voto de cabresto – em que os camponeses eram levados a votar nos candidatos apontados pelos latifundiários e pela fraude, entre 1889 e 1930.
 
O golpe militar rompeu com essa continuidade, impôs a mais brutal ditadura que o País conheceu, destruindo ou golpeando profundamente a tudo o que tivesse elementos de democracia – Parlamento, Judiciário, partidos políticos, sindicatos, imprensa, entidades sociais e culturais, assim como as pessoas que ele arbitrariamente decidisse que estivessem vinculadas a essas atividades, consideradas “subversivas” pelo regime militar. 
 
Mas o golpe militar não teve como objetivo apenas terminar com o sistema democrático, mas também com o modelo econômico de desenvolvimento industrial e distribuição de renda, aliado à reforma agrária e a certas limitações à circulação do capital estrangeiro. Tanto assim que, entre suas primeiras medidas esteve não somente a intervenção em todos os sindicatos, mas a decretação da política de arrocho salarial – não haveria campanhas salariais ou outro tipo de reivindicação sindical. 
 
O que o regime militar chamaria de “milagre econômico”, com crescimento contínuo, por vários anos, de níveis altos do PIB, se apoiava na abertura ao capital estrangeiro, em créditos fáceis para as grandes empresas, mas também no arrocho salarial. Este era o verdadeiro “santo” do milagre, porque permitia a superexploração dos trabalhadores, submetidos a jornadas longas e extenuantes de trabalho, sem possibilidade de defender-se e de elevar seus salários, sequer ao nível da inflação da época.
 
O modelo econômico introduzido pela ditadura era centrado no consumo de produtos sofisticados, das altas esferas do mercado – as de maior poder aquisitivo –, em que os automóveis tinham papel central, assim como na exportação. A massa dos trabalhadores, com seus salários arrochados, representava porcentagem cada vez menor no conjunto do consumo do País.
 
A compressão dos salários estendia-se também ao setor público, com cortes na quantidade de servidores estatais, arrocho dos seus salários e diminuição dos recursos para as políticas sociais. Entre seus efeitos estava a deterioração dos serviços sociais prestados pelo Estado, especialmente educação e saúde.
 
Até ali as escolas públicas eram um espaço frequentado por amplos setores das classes médias e pelos setores das classes populares que tinham acesso a elas. A partir da deterioração da qualidade do ensino público, os setores das classes médias que tinham possibilidade foram migrando, cada vez mais, para as escolas privadas, para que seus filhos pudessem disputar em melhores condições o acesso às melhores universidades.
 
Da mesma forma, a piora dos serviços de saúde pública produziu algo similar, com a proliferação dos planos privados de saúde, em detrimento ao atendimento nos serviços públicos, pela péssima qualidade que estes passaram a ter.
 
A ditadura na democracia
O Brasil viveu um processo gradual e moderado de transição da ditadura para a democracia. O próprio processo de transição não desembocou na eleição do primeiro presidente civil pelo voto direto dos cidadãos, mas por um Colégio Eleitoral, cuja composição era condicionada pela ditadura e que, para se obter maioria de votos, requeria uma aliança com setores do regime militar.
 
Como consequência, o primeiro governo civil depois do fim da ditadura terminou sendo presidido por um político – José Sarney, depois da morte de quem tinha sido eleito por aquele Colégio –, proveniente da ditadura, ao mesmo tempo que seu governo foi composto pelo principal partido de oposição – PMDB – e por um partido originário da ditadura – PFL.
 
     O regime democrático instaurado a partir desse pacto de conciliação entre setores opostos e outros provenientes da ditadura deu-lhe um caráter conservador. Foi restaurado o Estado de Direito – com eleições periódicas, diversidade de partidos políticos, separação dos poderes do Estado, restauração de direitos como o habeas corpus e do direito de organização social e política, entre outros.
 
Mas nenhuma reforma estrutural, de fundo, dos poderes sociais e econômicos da época da ditadura, foi realizada. Não houve reforma agrária, para democratizar o acesso às terras. Não houve reforma do sistema bancário, para permitir a democratização do acesso aos créditos. Não houve democratização dos meios de comunicação que, ao contrário, se tornaram ainda menos democráticos. 
 
Houve, assim, uma democratização institucional, do sistema político, nos moldes da concepção liberal de democracia, que separa a esfera político-institucional das esferas econômicas e sociais. O Brasil passou a ser considerado um país democrático, sem deixar de ser o país mais desigual do continente e mais desigual do mundo.
 
No marco dos fatores de continuidade com o antigo regime estava a anistia que a ditadura autoimpôs ao Brasil, com perdão para todos os crimes políticos cometidos durante o regime militar. Uma anistia que, mais do que buscar a pacificação, terminando com as condenações de militantes da oposição e o retorno dos que se haviam exilado, servia para proteger aos próprios militares de todas as arbitrariedades cometidas.
 
Nessa autoanistia se incluíam crimes como a tortura que, pela legislação penal internacional, é um crime imprescritível, e portanto, não poderia ser incluído na anistia.
 
A democracia restaurada foi um misto do velho e do novo, do Estado de Direito e de elementos – econômicos, sociais, políticos – herdados da ditadura. 
 
O passado que não passa 
A convivência com a desigualdade – a pobreza, a miséria, a exclusão social – é o elemento mais abrangente que o Brasil pós-ditadura manteve. Não foi senão na última década que, pela primeira vez, o País entrou em um profundo e extenso processo de democratização social, que diminuiu, de forma significativa, a pobreza, a miséria e a exclusão social. Mas durante uma década e meia o quadro social herdado da ditadura seguiu intocado no novo regime.
 
O próprio modelo econômico, centrado no consumo das esferas altas do mercado – classe média alta e setores ricos da população – se manteve praticamente intacto. O baixo poder aquisitivo dos salários, os níveis altos de desemprego, a grande proporção de trabalhadores sem carteira de trabalho – tudo perpetuou a exploração do trabalho, mesmo na democracia.
 
As Forças Armadas perderam espaço político, retiraram-se para suas funções específicas, depois de ter ocupado os postos-chave no Estado durante a ditadura. Mas elas se precaveram das possibilidades de que seus crimes fossem apurados, e punidos seus responsáveis. Para isso, foi essencial a manutenção da Lei da Anistia e o silêncio sobre as violações sistemáticas dos direitos humanos cometidas no regime militar.
 
Somente há poucos anos foi constituída uma Comissão da Verdade, para apurar todas as violações cometidas pelo Estado, suas instituições e seus agentes. Ainda assim, entre as atribuições da Comissão está apenas a apuração dos fatos e responsabilidades, sem poder de punição ou de questionar a existência da Lei daAnistia. 
 
Os depoimentos de vítimas e parentes das vítimas, assim como de alguns responsáveis pelas violações dos direitos humanos, organizados pela Comissão Nacional e pelas Comissões que proliferaram pelo País, servem para recordar para alguns e para revelar para tantas gerações que não viveram a ditadura as monstruosidades cometidas durante aquele período. Poderá até, de alguma forma, permitir que se questione a Lei da Anistia, para fazer justiça também legalmente ao acontecido no período militar, assim como para que o Brasil não permaneça à margem das leis internacionais de proteção aos direitos humanos, que preservam a condenação da tortura como crime imprescritível.
 
Embora em vários aspectos a ditadura tenha deixado seus sinais na democracia, esse aparece como o elemento mais significativo, pelo que a tortura tem de monstruoso como forma de ação terrorista do Estado. O fim da Lei da Anistia não terminaria com todas as heranças da ditadura, mas ao menos ajustaria contas com sua forma mais abominável de ação violenta.


Por Emir Sader

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