O mercado de
trabalho brasileiro está marcado por significativas e persistentes
desigualdades de gênero e raça e esse é um aspecto que deve ser levado em conta
nos processos de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas
em geral, e, em particular, das políticas de emprego, inclusão social e redução
da pobreza.
As diversas formas de discriminação estão
fortemente relacionadas aos fenômenos de exclusão social que originam e
reproduzem a pobreza. São responsáveis pela superposição de diversos tipos de
vulnerabilidades e pela criação de poderosas barreiras adicionais para que
pessoas e grupos discriminados possam superar a pobreza e ter acesso a um
trabalho decente. No Brasil, as desigualdades de gênero e raça não são
fenômenos que estão referidos a "minorias" ou a grupos específicos da
sociedade. Pelo contrário, são problemas que dizem respeito às grandes maiorias
da população: segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) 2003, as mulheres representam 43% da População Economicamente Ativa
(PEA) no Brasil e os negros (de ambos os sexos) representam 46%. Somados,
correspondem a aproximadamente 70% da PEA (60 milhões de pessoas). As mulheres
negras, por sua vez, correspondem a mais de 15 milhões de pessoas (18% da PEA)
e, como resultado de uma dupla discriminação (de gênero e raça), apresentam uma
situação de sistemática desvantagem em todos os principais indicadores sociais
e de mercado de trabalho.
As desigualdades de gênero e raça são eixos
estruturantes da matriz da desigualdade social no Brasil que, por sua vez, está
na raiz da permanência e reprodução das situações de pobreza e exclusão social.
Por isso, enfrentar essas desigualdades significa tratar de uma característica
estrutural da sociedade brasileira, cuja transformação é imprescindível para a
superação dos déficits de trabalho decente atualmente existentes, assim como
para o efetivo cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
As desigualdades de gênero e raça se expressam
claramente nos indicadores de mercado de trabalho, como tem sido demonstrado
por vários estudos e pesquisas recentes. A análise acurada, precisa e
sistemática desses indicadores e de sua evolução é uma condição para a
elaboração de políticas e estratégias voltadas para alteração desse quadro.
A taxa de participação das mulheres no mercado de
trabalho brasileiro continua aumentando, mas ainda está marcada por uma forte
diferença em relação à taxa de participação dos homens(1). A taxa de
participação das mulheres mais pobres e com menos escolaridade ainda é muito
inferior à taxa de participação das mulheres mais escolarizadas, o que indica a
existência de diferenças importantes entre as mulheres relacionadas aos
diferentes estratos de renda aos quais elas pertencem, e a dificuldade
adicional de inserção das mulheres pobres no mercado de trabalho.
Durante os anos 90 e começo da presente década,
observa-se uma importante elevação nos níveis de escolaridade da População
Economicamente Ativa (PEA), com uma significativa diminuição da porcentagem de
pessoas com menos escolaridade e um aumento nos níveis superiores de
escolaridade. No conjunto da PEA, a porcentagem de pessoas com menos de quatro
anos de estudo se reduziu de 35% para 24%, com menos de oito anos passou de 67%
para 53% e com mais de oito anos cresceu de 33% para 47%.
No entanto, observam-se diferenças importantes por
gênero e raça. Ainda que esses avanços tenham beneficiado homens, mulheres,
negros e brancos, eles não se distribuiram igualmente entre esses grupos. O
nível de escolaridade das mulheres é claramente superior ao dos homens, mas as
desigualdades raciais não se reduzem.
A taxa de desemprego de mulheres e negros é
sistematicamente superior à de homens e brancos e a taxa de desemprego das
mulheres negras é quase o dobro da dos homens brancos.
Também persistem importantes diferenciais de
remuneração no mercado de trabalho brasileiro relacionadas ao sexo e à raça/cor
das pessoas. Os rendimentos das mulheres são sistematicamente inferiores aos
dos homens, inclusive quando comparamos níveis similares de escolaridade. Por
hora trabalhada, as mulheres recebem, em média, 79% da remuneração média dos
homens (ou seja, 21% a menos) e os trabalhadores negros de ambos os sexos
recebem em média a metade (50%) do que recebem o conjunto dos trabalhadores
brancos de ambos os sexos. Por sua vez, as mulheres negras recebem apenas 39%
do que recebem os homens brancos (ou seja, 61% a menos). Por mês, essas
diferenças são ainda mais acentuadas: as mulheres recebem em média 66% do que
recebem os homens, os negros 50% do que recebem os brancos, e as mulheres
negras apenas 32% do que recebem os homens brancos.
Os rendimentos dos negros são sistematicamente
inferiores aos dos brancos, inclusive entre aqueles que têm o mesmo nível de
escolaridade. Em cada uma das faixas consideradas, inclusive entre aqueles que
têm estudos pós-secundários (11 a 14 e 15 anos e mais), os negros recebem
aproximadamente 30% a menos que os brancos. Se comparamos mulheres negras com
homens brancos (ambos na faixa de 11 anos e mais de estudo), elas recebem
apenas 46% do que recebem os homens brancos por hora trabalhada.
Esses dados põem por terra um dos argumentos mais
freqüentemente utilizados para justificar os acentuados diferenciais de
rendimento entre negros e brancos, que é o fato do nível de escolaridade dos
trabalhadores negros, no seu conjunto, ser significativamente menor que o nível
de escolaridade dos trabalhadores brancos. Apesar disso ser verdade, o dado
acima indica que a diferença de escolaridade não é suficiente para explicar a
diferença de rendimentos e que, portanto, há outros fatores que a explicam,
entre elas os mecanismos de segregação ocupacional baseados na raça/cor das
pessoas e uma série de mecanismos diretos e indiretos de discriminação.
Por outro lado, a segmentação ocupacional por
gênero e raça persiste e exerce uma forte influência sobre os rendimentos e
demais indicadores de qualidade de emprego de homens e mulheres, negros e
brancos. A porcentagem de ocupações precárias, informais e de baixa qualidade
sobre o total do emprego no Brasil é muito significativa: 57% (2). Mas essas
cifras também evidenciam importantes diferenças de gênero e raça: enquanto a
proporção de ocupações informais e precárias sobre o total do emprego masculino
era de 54%, para as mulheres essa cifra era de 61% (ou seja, 13% superior). Em
termos de raça essas desigualdades são ainda mais acentuadas: foram
classificadas como informais ou precárias 50,4% das ocupações dos brancos (de
ambos os sexos) e 65,3% das dos negros (de ambos os sexos), o que configura uma
diferença de 29%.
Uma grande proporção da ocupação feminina se
concentra nos segmentos mais precários do mercado de trabalho: trabalhadores
por conta própria (com exceção dos profissionais ou técnicos), serviço
doméstico e ocupados sem remuneração. A porcentagem de mulheres ocupadas no
serviço doméstico (18%) está entre as mais altas entre os países
latino-americanos. Se somamos a isso a porcentagem de ocupadas sem remuneração
(15%), chegamos a uma cifra de 33%. Isso significa que um terço das mulheres
que trabalham no Brasil ou não recebem nenhuma remuneração pelo seu trabalho ou
estão ocupadas no serviço doméstico. Além disso, do total de ocupadas no
serviço doméstico, apenas 27% têm carteira assinada (ou seja, mais de 2/3 delas
não estão registradas e não gozam dos benefícios previstos na legislação do
trabalho).
Em todas essas formas precárias de ocupação as
mulheres negras estão sobre-representadas em relação às brancas: a porcentagem
das que estão empregadas no serviço doméstico é 23,3%, e a de ocupadas sem
remuneração é de 17,5%, o que soma 40,8%. Entre as trabalhadoras no serviço
doméstico, 71,2% das brancas e 76,2% das negras não têm carteira assinada.
A divulgação sistemática de dados e estatísticas
desagregadas por sexo e raça/cor (tais como os produzidos pela PNAD e pela
Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED – realizada pela Fundação Seade e pelo
Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese)
tem contribuído de forma muito importante para evidenciar as desigualdades de
gênero e raça que caracterizam o mercado de trabalho e a sociedade brasileiras.
Desenvolver o conhecimento sobre as tendências de evolução desses indicadores,
assim como sobre os obstáculos para uma inserção mais igualitária de mulheres e
negros no mercado de trabalho é um aspecto fundamental das políticas que devem
estar voltadas para a superação dessas desigualdades. Por outro lado, a
integração das dimensões de gênero e raça à análise do mundo do trabalho ajuda
não apenas a entender os problemas vividos por mulheres e negros e os fatores
que os produzem, mas também a compreender melhor o funcionamento do mercado de
trabalho em seu conjunto, assim como a dinâmica de produção e reprodução das
desigualdades sociais no Brasil.
Laís Abramo é diretora do escritório da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) no Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário