A violência contra mulher é um problema de saúde pública de proporções epidêmicas.Segundo o Mapa da Violência (2012), entre os 84 países do mundo, o Brasil ocupava a 7ª colocação em níveis de feminicídio, baseado nas estatísticas da OMS entre 2006 e 2010. Além de ser uma situação inaceitável e de estar associada as desigualdades sociais, como renda e escolaridade, a subnotificação por falta de denúncia e a impunidade do agressor são questões que caminham juntas e de grande relevância dentro dessa temática.
Muitas mulheres não denunciam a violência que sofrem e, sem denúncia não há crime. Sendo assim, como acabar com a impunidade? Desde que foi criada, a Lei Maria da Penha fez com que a violência contra a mulher deixasse de ser tratada com um crime de menor potencial ofensivo. A lei acabou com as penas pagas com cestas básicas ou multas, e passou a englobar além da violência física e sexual, a violência psicológica, a violência patrimonial e o assédio moral. Mas, apesar da Lei Maria da Penha ter sido criada para aumentar o rigor das punições aos que cometem agressões contra a mulher em âmbito doméstico ou familiar, o efeito causado durante os seus 7 anos de existência parece ser questionável. Por que será que isso aconteceu? Devido à falta de denúncia ou porque a Lei é frágil?
De acordo com os dados do Ministério da Saúde, são estimadas 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano no Brasil, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma a cada hora e meia. Diante dessas estatísticas alarmantes, o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) avaliou os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, e concluiu que a Lei Maria da Penha não teve o impacto esperado sobre o número de óbitos entre mulheres em decorrência da violência doméstica. As taxas de homicídio entre mulheres por violência doméstica permaneceram estáveis antes e depois da vigência da nova lei. Segundo IPEA, entre 2001 e 2006, período anterior à lei, a taxa de feminicídios foi de 5,28 mulheres a cada 100 mil. No período entre 2007 e 2011, essa taxa foi de 5,22 mulheres a cada 100 mil.
Esses dados estão de acordo com as análises apresentadas pelo Mapa da Violência 2012. No Brasil, no período 2009-2011, foram registrados, no SIM, 13.071 feminicídios, o que equivale a uma taxa bruta de mortalidade de 4,48 óbitos por 100.000 mulheres. Após correção dos dados, estima-se que ocorreram 16.993 mortes, resultando em uma taxa corrigida de mortalidade anual de 5,82 óbitos por 100.000 mulheres. O relatório descreve que no primeiro ano de vigência efetiva da lei Maria da Penha, 2007, as taxas experimentaram um leve decréscimo, voltando imediatamente a crescer de forma rápida até o ano 2010, igualando-se ao maior patamar já observado no país: o de 1996.
A pesquisa do IPEA apresentou também o perfil dessas vítimas, que foi predominantemente jovem: 31% das mulheres na faixa etária de 20 a 29 anos e 23% entre 30 e 39 anos. Cerca de 30% dos feminicídios ocorreram no domicílio, 31% em via pública e 25% em hospital ou em outro estabelecimento de saúde. Além disso, ocorreram mais episódios de violência com óbito contra mulher nos finais de semana (36%).
A região do país com as maiores taxas é o Nordeste, que apresentou uma taxa de 6,9 óbitos por 100 mil mulheres, no período de 2009 a 2011, seguida pela Centro-Oeste e Norte, com 6,86 e 6,42 óbitos por 100 mil mulheres, repectivamente. No rankeamento entre os estados brasileiros, a menor taxa foi encontrada no Piauí, com 2,71/100 mil, seguido por Santa Catarina, com taxa de 3,28; São Paulo, com 3,74; Maranhão, com 4,63; Rio Grande do Sul, com 4,64; e Amazonas, com 5,07 casos de feminicídios por 100 mil mulheres. Em situação oposta está o Espírito Santo, estado brasileiro com a maior taxa de feminicídios, 11,24 a cada 100 mil mulheres, seguido por Bahia (9,08) e Alagoas (8,84).
Vale salientar que na análise desse tipo de dados há de se ter muita precaução, pois a não redução do feminicídio não significa necessariamente que a Lei Maria da Penha não tenha sido bem sucedida. Alguns aspectos têm que ser esclarecidos. Um deles diz respeito ao feminicídio não ser considerado um qualificador penal, que consequentemente promove uma fragilidade da lei e seu cumprimento. Além disso, existem outros fatores que estão para além da Lei e sua aplicação. O primeiro deles diz respeito à disponibilidade de dados confiáveis e válidos das condições e circunstâncias dessas agressões. Isso é um problema que promove limitações nas conclusões e que pode gerar subestimações nas taxas de feminicídios. No Brasil, não existem estimativas nacionais sobre a proporção de mulheres que são assassinadas por parceiros. Sendo assim, o cálculo das taxas de mortalidade diretamente a partir dos dados do sistema, como o SIM, pode ser insuficiente para demonstrar a realidade. Porém, vale refletir que se no Brasil temos 50.000 homicídios por ano e se a relação entre mortalidade masculina e feminina é de 4 para 1, temos um total de 10.000 mortes de mulheres por homicídio. Se realmente metade delas é por violência doméstica (feminicídio), temos um dado bastante interessante sobre a efetiva gravidade do problema.
É interessante também lembrar que o indicador mortalidade não é necessariamente o mais adequado para avaliar se a lei funcionou ou não, pois é um evento extremo que talvez não seja influenciado pela gravidade da pena. É o caso da pena de morte nos Estados Unidos que, segundo o relatório oficial do Centro de Informação da Pena de Morte (CIPM), não necessariamente diminuiu os homicídios nem reduziu os níveis de a violência. Sendo assim, é importante que sejam usados outros indicadores de impacto para avaliar o efeito da Lei.
Outro ponto a ser considerado diz respeito aos determinantes sociais associados à violência contra mulher, como baixos níveis de renda e escolaridade. Esses fatores influenciam inclusive a maior ocorrência regional de violência com morte contra mulher, uma vez que as regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte (regiões com menor escolaridade e renda) apresentam taxas de feminicídios mais elevadas do que as regiões Sul e Sudeste. A pesquisa do IPEA corrobora com esses achados porque revela inclusive que as mulheres negras e pobres são as principais vítimas da violência. Além disso, a maior parte das vítimas tinha baixa escolaridade, 48% daquelas com 15 ou mais anos de idade tinham até 8 anos de estudo.
No que diz respeito à subnotificação, em 2004, a Portaria MS/GM nº 2.406 de 5 de novembro, instituiu o serviço de notificação compulsória de violência contra a mulher dentro do SUS e aprovou instrumento e fluxo para notificação nos serviços de saúde. No entanto, apesar de serem as mulheres com piores condições econômicas a procurarem o Sistema Único de Saúde (SUS) no caso de ocorrência de violência, pode-se dizer que ainda há subnotificação nesse grupo. As potenciais explicações são o desconhecimento da Lei, medo do parceiro em consequência da denúncia ou medo de não conseguir prover o sustento dos filhos em caso de separação ou prisão do parceiro. Além disso, há subnotificação de violência também entre as mulheres com melhores condições econômicas, que se omitem e se calam diante de tais circunstâncias, ou buscam serviços particulares para resolução ou atenuação de conflitos conjugais, principalmente por vergonha de se expor nos serviços públicos de saúde ou em delegacias especializadas.
Determinantes sociais da violência contra mulher
Além da baixa escolaridade e da baixa renda, existem condições sócio demográficas que predispõem as mulheres a situações de violência conjugal que podem chegar ao feminicídio.Segundo Mota e colaboradores da Fundação Oswaldo Cruz, dentre essas condições se destacam o desemprego ou emprego desqualificado, ter presenciado ou sofrido agressões na família de origem e possuir filhos. A renda per capita também é um determinante importante a ser considerado, uma vez que as famílias mais numerosas e com maior número de dependentes, teriam um maior nível de pobreza. Além disso, a dependência financeira em relação ao agressor aumenta a chance de sofrer violência sexual do parceiro. Esses indicadores se referem a uma população que sofre com o estresse econômico, que associado à baixa escolaridade atuam como condições precipitadoras de conflitos e da violência doméstica.
Apesar de fatores individuais, como baixa autoestima, padrões de afeto alterados, história familiar e idealização do relacionamento serem fatores que atuam na dinâmica do processo de violência entre parceiros, existem fatores mais distais, relacionados à comunidade e as normas sociais e padrões culturais, que também fazem parte de um complexo conjunto de características favorecedoras de violência doméstica (Mota, 2004). Sendo assim, a violência entre parceiros não pode ser considerada algo corriqueiro ou que não diga respeito ao poder público, pois a redução de relações conflituosas e violentas deve envolver ações intersetoriais que estejam afinadas com a redução das desigualdades sociais.
*Feminicídio é o homicídio de mulheres em decorrência de conflitos de gênero, geralmente cometidos por um homem, parceiro ou ex-parceiro da vítima. Esse tipo de crime costuma implicar situações de abuso, ameaças, intimidação e violência sexual
Referências Bibliográficas
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Mota JC. Violência contra a mulher praticada pelo parceiro íntimo: estudo em um serviço de atenção especializado [dissertação de mestrado]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz; 2004 [acesso em 18 jul 2013]. Disponível em: http://arca.icict.fiocruz.br/bitstream/icict/4914/2/726.pdf
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Lamarca G, Vettore M. Série: Qual é o impacto da Lei Maria da Penha na redução de homicídios femininos? (2) [Internet]. Rio de Janeiro: Portal DSS Brasil; 2014 Abr 07. Disponível em: http://dssbr.org/site/2014/04/serie-qual-o-impacto-da-lei-maria-da-penha-na-reducao-de-homicidios-femininos-2/
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